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sábado, 17 de setembro de 2011

OCEANO POSSÍVEL

Embora ninguém percebesse era um dia emocionalmente difícil para ela. Mais um entre tantos que estavam seguindo aquela semana. Ela tentara consigo mesma compreender um pouco do que estava se passando, mas alguém dentro dela se recusava a traçar qualquer diálogo sobre o assunto. Tentou escrever sobre, mas o cérebro não  lhe permitiu exprimir uma única linha. Havia um bloqueio intransponível que impedia o contato entre as suas sinapses e as emoções.

Ela conhecia a causa, mas não sabia explicar o porquê.

 O tempo escapulia com os fios de gelo cortante que o vento frio soprava sobre seus cabelos. O corpo leve carregava há horas os passos chumbados de alguém que segue em frente com dificuldade. Ela não estava em casa e não sentia-se deslocada. Aquele era o espaço ideal pra suas fragmentações emocionais. Uma espécie de terapia.

Percorreu quadro a quadro, imagem por imagem. Tudo que chegava até sua retina diminuía aos poucos o fardo das pegadas. A confusão interna cedia lugar para inquietações universais, perspectivas diferentes, formas incomuns de enxergar o que ela, até aquele momento, visualizava por outro ângulo. 

Conversas e risadas descontraídas com alguém que a acompanhava, hora ou outra interrompia a carga de seriedade dos seus pensamentos. Aquilo mais do que necessário, era essencial para pausar o fluxo da sensação amarga que a atingia como um pêndulo. Ainda que reconhecesse o quanto isso ajudava, ela carregava a culpa de saber que toda a universalidade até agora vista, não obstante pessoal, só a distanciava do momento em que ela, mesmo com dificuldade, deveria alcançar o cerne de sua aflição.  O gosto acrimonioso impregnava seus sentidos em minutos entremeares quando num determinado instante de intervalo seus ouvidos captaram uma frase pronunciada ao longe: 

“Há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

O anuncio brotou de uma sonoridade distante, como se fora um presságio. Ela seguiu as ondas sonoras das palavras com movimentos lentos, a alma sedenta, mas pouco crédula. Alguém em algum lugar conseguira amortecer suas sensações ocres. Aquela frase exprimia tudo o que ela não sabia que precisava ouvir.

 “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

 “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

 “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

Aos poucos o som se tornava mais nítido e a frase repetia-se em canto constante.  A voz era feminina, conseguira detectar com clareza.  
Menos de um segundo  depois e sua perspectiva opaca mirava a fonte de tais pronuncias. A audição se tornou sutilmente afetada enquanto sua pupila diminuía de tamanho para regar a visão com a maior quantidade de nitidez luminosa. As imagens perante seus olhos se movimentavam exibindo uma moça despida. Nua!
E antes que ela mesma se perguntasse o motivo, seus olhos neurais lhe responderam que aquela nudez representava a virgindade do corpo perante o mundo. 

“Há sempre um copo de mar para um homem navegar”

Sim, embora seus olhos fossem mais vivos que seus ouvidos, ela ainda escutava o som e as palavras ondulavam seu estado emocional.
A moça nua enquadrada na tela mexia-se em um cenário simples e comum, exceto pela presença de baldes e bacias preenchendo o todo que a margeava. A moça estava sentada no chão e lentamente se molhava.  Ela mesma se enxergava na moça e a moça era ela e ela era moça que se banhava com água pura. A água que vinha de vários recipientes... 

Era uma água límpida. Água de panela, bacia, balde, corpo. Água de alma. Água de mar!

Água de quem se encontra na terra tão desconectada, tão farta e seca da areia, do pó fino impregnado n a pele rejeitosa, que mal consegue ver onde pisa. Água que lava o corpo de quem carrega nas vestes os resquícios da ventania, tempestuosa travessia de “daqui não sei mais...”. Água gelada e serena de quem sedenta se senta e não reconhece, mas com dificuldade percebe:

         Há                      Um copo                          Para um                                   Navegar

                       Sempre                             De mar                                 Homem


  



                                                       Sara Ramo (Madri, Espanha, 1975)
 Oceano Possível, 2002
Video digital, cor e som
Coleção: Galeria Fortes Vilaça

"Há sempre um copo de mar/ para um homem navegar" (Jorge de Lima). "Nestes versos, as palavras empregadas são do cotidiano, a rima é comum, e a sintaxe não poderia ser mais simples. Entretanto, são dois versos generosos para a imaginação" (Comentário de Raduan Nassar, Cadernos de Literatura Brasileira, nº2. São Paulo: Instituto Moreira Salles, p.24). Assim também sugere o trabalho de Sara Ramo: feito de objetos do cotidiano, num ambiente doméstico, e que, articulados pel artista, ganham uma densidade de extrema generosidade. Oceano Possível surge não só como uma constatação levemente melancólica dos desenganos desta nossa época pós-utópica, mas também como signo da descoberta de brechas dentro de dimensões prosaicas das experiências que habitam essa mesma época. Brechas nas quais é possível inserir pequenas transformaações, indicando um tempo presente pulsante, pronto para ser ativado.